Geraldo e
Cláudio são amigos inseparáveis. Aposentados, podem ser vistos a partir das
duas da tarde, todos os dias, na mesa exclusiva da dupla, no Bar do Cardoso.
Nos últimos 30 anos, só falharam um dia. Foi no domingo passado, pois naquele
dia o bar fechou devido ao recrudescimento da violência que toma conta da
cidade há uma semana.
por
Fernando Soares Campos.
Geraldo
abre o jornal e lê para o companheiro:
- Vê
essa, meu: "Já somam 107 os suspeitos abatidos pela polícia desde
sexta-feira passada".
- Suspeitos
de quê?! - perguntou Cláudio
- Aqui só
fala em suspeitos.
- Mas quem são esses suspeitos?
- Ora, eu
já li isso pra você, são os mortos, meu!
- Sei.
Mas quem são os mortos?
- Putz!,
meu, você não saca uma! Quer que eu desenhe? Os mortos são os suspeitos!
- Mas,
meu, eu quero saber quem são os mortos suspeitos.
- Fácil!
São os caras que a polícia matou.
- E esses
caras têm nome?
-
Tinham.
- Como
"tinham"?
- Agora
são somente números.
- São
suspeitos de quê?
-
Suspeita-se que alguns desses suspeitos participaram de um movimento suspeito,
supostamente ligado ao suspeito crime organizado.
- Mas, se
depois de investigados os casos, descobrirem que alguns dos suspeitos são
inocentes?
- E
daí?!
- O que
acontece com esses que já morreram?
- O que
acontece?! Ora, meu!, não acontece mais nada, os caras já morreram.
- E a
polícia está procurando novos suspeitos?
-
Claro.
- Mas,
pelo que estou entendendo, qualquer pessoa que estava na cidade, nos últimos
dias, é um suspeito.
- Não é
bem assim...
- Por que
não?
- A
polícia não pergunta onde o cara estava aqui nos últimos dias.
- E se
ficar provado que o morto suspeito não estava na cidade há mais de uma
semana?
- Aí o
suspeito morto passa a ser apenas morto.
-
Hein?!!
-
Torna-se um morto acima de qualquer suspeita.
***
Esse
conto foi escrito em maio de 2006, inspirado em fatos reais, que ficaram
tristemente conhecidos como "O Massacre de Maio", em
que foram mortos, principalmente, jovens negros, moradores da periferia da
Grande São Paulo.
"Diz-se
que, em três semanas, houve 564 mortos e a mídia
menciona os policiais executados, e diz que os bandidos mortos teriam caído em
confrontos com a polícia. Entretanto, um grupo minoritário de promotores e
defensores públicos, fez plantão junto aos necrotérios e arriscou sua vida para
provar que a enorme maioria dos mortos era de pessoas desarmadas, inofensivas,
que nada tiveram nunca a ver com qualquer forma de crime, jovens entre 11 e 31
anos, que foram "apagados" pelas costas e\ou com tiros de baixo para
cima, e\ou com rajadas de metralhadora, enfim, com métodos que não deixavam qualquer
dúvida sobre a mão da polícia." (Trecho do artigo "O Massacre
de Maio: a memória", do professor Carlos Lungarzo, 2013.)
Para ler
o artigo completo, use o link:http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/ colunistas/o-massacre-de-maio-a-memoria/
Naqueles
dias, enquanto a matança continuava aterrorizando a população paulistana e de
cidades da região metropolitana de São Paulo, o jornal O Estado de São Paulo
(Estadão) publicou reportagem com o balanço parcial do número e características
das vítimas:
"Ainda
não se sabe quem são os 107 mortos pela polícia"
"Na
semana em que o medo tomou conta dos paulistanos, desde o início da onda de
violência atribuída à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), a
polícia de São Paulo matou mais pessoas que no último trimestre de 2005. Desde
o dia 12, 107 pessoas foram mortas pela polícia. Nos últimos três meses de
2005, o número ficou em 65 mortos. A média diária de homicídios praticados pela
polícia depois dos ataques é 21 vezes maior do que a média do ano passado. Desde
o começo dos ataques, os dois Institutos Médico Legais da capital receberam 85
corpos de pessoas mortas pela policia nas ações de reação aos ataques do PCC.
Destes mortos, 64 já foram reconhecidos e enterrados por suas famílias. Dos
outros 21, quatro foram identificados, mas as famílias ainda não foram reclamar
os corpos. Se isso não acontecer em até 72 horas, ou até que todos os corpos
sejam identificados, essas vítimas podem ser enterradas como indigentes. Para
os corpos que ainda estão sem identificação, será feito o reconhecimento a
partir das digitais. O governo de São Paulo ainda não divulgou uma lista com o
nomes dos mortos pela polícia."
Para ler
matéria completa, use o link: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral, ainda-nao-se-sabe-quem-sao-os-107-mortos-pela-policia,20060519p27542
Foi essa
reportagem que deu origem ao conto "Mortos acima de qualquer
suspeita", que republicamos aqui para lembrar os 10 anos do
Massacre de Maio e uma década de dor das "Mães de
Maio", movimento formado por mães, tias, avós, parentes e amigos
de vítimas do massacre.
Nesta
semana, ocorreu o encontro do Movimento Black Lives Matter (EUA) e
familiares de vítimas de violência policial do Rio e de São Paulo, com a
participação de mulheres que mantêm em atividade o movimento Mães de Maio.
Assista
ao vídeo desse encontro usando o link: http://brasil.estadao.com.br/noticias/ geral,ainda-nao-se-sabe-quem-sao-os-107-mortos-pela-policia,20060519p27542 http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ainda-nao-se-sabe-quem-sao-os-107-mortos-pela-policia,20060519p27542
Matéria copiada do http://port.pravda.ru/cplp/brasil/23-07-2016/41411-mortos_suspeita-0/
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