Por. Albert Camus em 27/03/2012 na edição 687. Reproduzido do suplemento “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, 25/3/2012; tradução de Paulo Werneck.
É difícil, hoje em dia, evocar a liberdade de imprensa sem ser tachado
de extravagante, acusado de ser Mata Hari, sem se ver convencido de ser
sobrinho de Stalin. No entanto, essa liberdade, entre outras, é só um
dos rostos da liberdade pura e simples, e nossa obstinação em defendê-la
será compreendida se houver boa vontade para admitir que não há outra
maneira de vencer de fato a guerra.
É certo que toda liberdade tem seus limites. É preciso, ainda, que eles
sejam reconhecidos. Sobre os obstáculos que hoje são postos à liberdade
de pensamento, aliás, já dissemos tudo o que foi possível dizer e
diremos novamente, à saciedade, tudo o que nos será possível dizer.
Em particular, uma vez imposto o princípio da censura, jamais nos
espantará o bastante ver que a reprodução de textos publicados na França
e examinados pelos censores da metrópole seja proibida no Soir Républicain [jornal publicado em Argel, do qual Albert Camus era redator-chefe], por exemplo.
O fato de que, a esse respeito, um jornal dependa do humor ou da
competência de um homem demonstra melhor do que qualquer outra coisa o
grau de inconsciência a que chegamos. Um dos bons preceitos de uma
filosofia digna desse nome é o de jamais se derramar em lamentações
inúteis diante de um estado de fato, que não pode mais ser evitado.
A questão na França não é mais a de saber como preservar as liberdades
da imprensa. É a de procurar saber como, diante da supressão dessas
liberdades, um jornalista pode permanecer livre. O problema não
interessa mais à coletividade. Ele diz respeito ao indivíduo.
Meios
E justamente o que nos agradaria definir aqui são as condições e os
meios pelos quais, no próprio seio da guerra e de suas servidões, a
liberdade pode ser não somente preservada, mas também manifestada. Esses
meios são quatro: a lucidez, a recusa, a ironia e a obstinação.
A lucidez pressupõe a resistência aos movimentos do ódio e ao culto da
fatalidade. No mundo de nossa experiência, é certo que tudo pode ser
evitado. A própria guerra, que é um fenômeno humano, pode ser a todo
momento evitada ou interrompida por meios humanos. Basta conhecer a
história dos últimos anos da política europeia para nos convencermos de
que a guerra, seja ela qual for, tem causas óbvias. Essa visão clara das
coisas exclui o ódio cego e o desespero que deixa estar.
Um jornalista livre, em 1939, não se desespera e luta pelo que acredita
ser verdadeiro como se a sua ação pudesse influenciar o curso dos
acontecimentos. Não publica nada que possa incitar ao ódio ou provocar o
desespero. Tudo isso está em seu poder.
Em face da maré de besteiras, é preciso igualmente opor algumas
recusas. Nenhuma das limitações do mundo leva um espírito um pouco limpo
a aceitar ser desonesto. Ora, por menos que conheçamos o mecanismo das
informações, é fácil nos assegurarmos da autenticidade de uma notícia.
É a isso que um jornalista livre deve dedicar a sua atenção. Pois, se
ele não pode dizer o que pensa, pode não dizer o que não pensa ou o que
acredita ser falso. E é assim que se mede um jornal livre: tanto pelo
que diz como pelo que não diz. Essa liberdade bem negativa será, de
longe, a mais importante de todas, se soubermos mantê-la.
Pois ela prepara o advento da verdadeira liberdade. Em consequência
disso, um jornal independente dá a fonte de suas informações, ajuda o
público a avaliá-las, repudia as cascatas, suprime as injúrias,
compensa, em comentários, a uniformização das informações e, em resumo,
serve à verdade na medida humana de suas forças. Essa medida, por mais
relativa que seja, lhe permite ao menos recusar aquilo que nenhuma força
no mundo pode fazê-lo aceitar: servir à mentira.
Chegamos, assim, à ironia. Podemos estabelecer que, em princípio, um
espírito que tem gosto e os meios para impor limitações é impermeável à
ironia. Não vemos Hitler, para tomar apenas um exemplo entre outros,
utilizar a ironia socrática.
Conclui-se que a ironia permanece como uma arma sem precedentes contra
os poderosos demais. Ela completa a recusa na medida em que permite não
rejeitar o que é falso, mas muitas vezes dizer o que é verdadeiro. Um
jornalista livre, em 1939, não tem muitas ilusões sobre a inteligência
daqueles que o oprimem. Ele é pessimista no que diz respeito ao homem. A
cada dez verdades ditas em tom dogmático, nove são censuradas. Essa
disposição ilustra com bastante exatidão as possibilidades da
inteligência humana.
Ela explica também que jornais franceses como Le Merle ou Le Canard Enchaîné
[jornais satíricos parisienses] possam publicar regularmente os
corajosos artigos que conhecemos. Um jornalista livre, em 1939, é
portanto necessariamente irônico, ainda que, volta e meia, a
contragosto. Mas a verdade e a liberdade são amantes exigentes, pois têm
poucos apreciadores.
Obstinação
Com essa atitude de espírito brevemente definida, é claro que ela não
se poderia sustentar de modo eficaz sem um mínimo de obstinação. Não são
poucos os obstáculos à liberdade de expressão. Não são os mais graves
deles que poderão desencorajar um espírito. Pois as ameaças, os
empastelamentos, as perseguições geralmente obtêm na França o efeito
oposto ao que propõem.
É preciso reconhecer, porém, que há obstáculos desencorajadores: a
constância na tolice, a covardia organizada, a ininteligência agressiva –
e por aí vai. Eis o grande obstáculo sobre o qual é preciso triunfar. A
obstinação é aqui uma virtude cardeal. Por um paradoxo curioso, porém
óbvio, ela se põe a serviço da objetividade e da tolerância.
Eis, portanto, um conjunto de regras para preservar a liberdade até
mesmo dentro da servidão. E depois?, diremos. Depois? Não sejamos tão
apressados.
Se cada francês quiser apenas manter em sua esfera tudo o que acredita
ser verdadeiro e justo, se quiser ajudar de sua frágil parte a
manutenção da liberdade, resistir ao abandono e divulgar sua vontade,
então, e somente então, essa guerra estará ganha, no sentido profundo da
palavra.
Sim, é muitas vezes a contragosto que um espírito livre deste século
faz sentir a sua ironia. O que encontrar de agradável neste mundo
inflamado? A virtude do homem, porém, é a de se manter diante de tudo o
que o nega.
Ninguém quer recomeçar em 25 anos a dupla experiência de 1914 e de
1939. É preciso, portanto, testar um método ainda novo em folha, que
seria a justiça e a generosidade. Mas estas só se exprimem nos corações
já livres e nos espíritos ainda clarividentes.
Formar esses corações e esses espíritos, ou melhor, despertá-los, é a
tarefa ao mesmo tempo modesta e ambiciosa que se apresenta ao homem
independente. É preciso se aferrar a isso sem olhar para mais à frente. A
história vai levar em conta ou não esses esforços. Mas eles terão sido
feitos.
***
A história do manifesto
Publicado pela primeira vez no domingo (18/3) pelo jornal Le Monde, o manifesto de Camus deveria ter aparecido na edição de 25 de novembro de 1939 do jornal Le Soir Républicain.
Coeditado por Albert Camus em Argel, o jornal se resumia a uma página
frente e verso. Teve só 117 edições: em janeiro de 1940, foi proibido
pelo governador de Argel.
Ao mesmo tempo que, em Paris, a imprensa denunciava a manipulação da
informação feita por Hitler, os jornalistas da maior colônia francesa
(que conquistaria sua independência em 1962) eram submetidos à censura
oficial.
A contradição não escapou ao jovem Camus, então com 26 anos, que a denunciava em seus textos no jornal Le Soir Républicain.
Francês nascido na Argélia, pacifista engajado na luta pela liberdade
em sua terra natal, o Nobel de Literatura de 1957 fez das contradições
do colonialismo um dos pilares de sua ficção, em romances como O Estrangeiro.
A repórter Macha Séry, de Le Monde, localizou o texto nos
Archives Nationales d'Outre-Mer, em Aix-en-Provence. Embora não esteja
assinado, o texto teve sua autenticidade comprovada, afirmaram à Folha os herdeiros de Camus.
***
[Albert Camus (1913-1960), escritor franco-argelino, foi também ensaísta e dramaturgo. Autor de A Peste e O Estrangeiro, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957]
FONTE:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed687_os_quatro_pilares_da_imprensa_livre
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